Essa semana veio à tona um caso curioso. Uma moça foi gravada em um avião, recusando-se a ceder seu lugar à janela para um menino de 4 anos. Inicialmente, a situação parecia um conflito trivial, mas desdobrou-se em um espetáculo público. Descobriu-se que uma advogada filmou o episódio, instigando a mãe do menino a confrontar a jovem que, por sua vez, manteve-se serena, colocando os fones de ouvido e olhando pela janela. No desenrolar dos eventos, a moça se tornou uma celebridade nas redes sociais, acumulando milhões de seguidores e parcerias comerciais, enquanto a mãe e a advogada enfrentaram críticas severas.
Esse episódio levanta questões sobre como lidamos com o "não" e o impacto desse comportamento em nossa cultura e sociedade. Não se trata apenas de um caso isolado, mas de um reflexo de padrões psicológicos e culturais que merecem análise.
O "não" como limite: uma perspectiva psicanalítica
Freud, em “O mal-estar na civilização”, descreve como os limites impostos pela sociedade são essenciais para a convivência humana, mas também geram frustrações que impactam nosso psiquismo. A moça que disse "não" no avião não apenas definiu um limite pessoal, mas também ativou nas pessoas ao redor a frustração inerente a quem ouve essa palavra. A incapacidade de lidar com essa frustração, especialmente em um contexto social como o brasileiro, pode ser entendida como um reflexo do que Melanie Klein chamou de "posição paranoide-esquizoide". Ao projetar no outro as partes indesejáveis de si — neste caso, a suposta “falta de empatia” — o coletivo transforma o indivíduo em um bode expiatório ou, paradoxalmente, em um herói.
O "não" também é essencial para o desenvolvimento da criança. Winnicott, em seus estudos sobre a importância do ambiente suficientemente bom, enfatiza que a frustração saudável é parte integrante da maturação emocional. Crianças que não enfrentam limites claros tendem a desenvolver uma relação fragilizada com a realidade, onde o desejo se sobrepõe às possibilidades. A recusa da moça à janela foi, simbolicamente, um ensinamento prático para a criança e para a sociedade: nem sempre o desejo será atendido.
O espetáculo do "não" e a projeção virtual
Outro aspecto intrigante desse episódio é o impacto nas redes sociais. O ato de seguir alguém que disse "não" reflete, como Lacan descreve, uma relação especular: as pessoas projetam naquela figura características que desejariam ter. Ao segui-la, sentem-se, de algum modo, mais próximas da capacidade de impor limites, algo que culturalmente é desvalorizado no Brasil.
A “mania do jeitinho”, característica brasileira, denota uma dificuldade em lidar com a ausência de soluções que atendam a todos. O “não” fere essa lógica porque é definitivo, confrontando a fantasia coletiva de que tudo pode ser negociado. Assim, o comportamento da advogada que filmou e instigou o conflito não é apenas uma questão ética, mas também psíquica. Ela transferiu para a jovem seu próprio desconforto com a frustração, numa tentativa de restaurar o equilíbrio interno, ainda que às custas da exposição de outra pessoa.
Reaprender o "não": uma lição cultural
Como sociedade, precisamos urgentemente ressignificar o "não". Ele não é grosseria, mas uma demarcação de limites saudáveis. A psicanálise nos ensina que o "não" é um ato de amor, tanto para quem o recebe quanto para quem o emite. É uma forma de preservar a individualidade em um mundo que constantemente pressiona pela conformidade.
Como dizia Lacan, "o desejo do homem é o desejo do outro". Talvez, ao seguir uma pessoa que teve a coragem de dizer “não”, o público esteja expressando, inconscientemente, um desejo coletivo de aprender a fazer o mesmo. No entanto, como aponta Bion, o crescimento emocional só é possível quando enfrentamos a dor da frustração e a elaboramos.
Dizer “não” é um ato de coragem. Recebê-lo, um exercício de maturidade. E talvez, ao nos permitirmos essas experiências, possamos finalmente transcender a cultura do "jeitinho" e construir relações mais autênticas, baseadas no respeito e no autoconhecimento.
Referências
Freud, S. (1930). O mal-estar na civilização. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
Klein, M. (1946). Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In: Inveja e Gratidão e Outros Trabalhos (1946-1963). Rio de Janeiro: Imago, 1991.
Winnicott, D. W. (1965). O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artmed, 2005.
Lacan, J. (1949). O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
Bion, W. R. (1962). Aprendendo com a experiência. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
Portal InfoMoney - https://www.infomoney.com.br/consumo/diva-do-aviao-entenda-caso-da-passageira-que-viralizou-por-nao-ceder-lugar-em-voo/
Portal do Holanda - https://www.portaldoholanda.com.br/famosos-tv/diva-do-aviao-da-1-entrevista-e-diz-que-foi-xingada-agora-voce-levanta-imbcil