Viver é um Rasgar-se e Remendar-se: Uma Reflexão Psicanalítica



Esta frase, que soa tão simples, traz uma verdade complexa e essencial sobre a vida humana. 

A frase "Viver é um rasgar-se e remendar-se" de Guimarães Rosa encapsula a essência do que significa enfrentar as dificuldades e contradições da vida. Em sua obra, Rosa sempre explorou a complexidade da condição humana, ilustrando que a vida é feita de altos e baixos, de rupturas e renovações. Para ele, a experiência humana é uma jornada de cicatrizes e curas, um processo em que, ao nos "rasgarmos", temos a chance de nos reconstruir com uma força renovada, mais alinhados ao nosso verdadeiro self. 

O que significa, afinal, esse "rasgar-se"? E como o "remendar-se" nos permite seguir em frente? A psicanálise, através das reflexões de Freud, Winnicott e Melanie Klein, nos oferece uma maneira de entender esse ciclo de construção, frustração e renovação como algo inerente ao desenvolvimento e ao amadurecimento.

A Construção e a Frustração: Freud e o Princípio da Realidade

Sigmund Freud, pai da psicanálise, revelou o papel essencial da frustração no desenvolvimento humano. Segundo ele, nascemos imersos em um estado em que desejamos tudo de forma imediata, sem barreiras, o que ele chama de "princípio do prazer". No entanto, ao longo do tempo, somos confrontados com a realidade — nem tudo pode ser alcançado tão facilmente. É aí que surgem as primeiras frustrações, as primeiras rupturas da nossa visão de onipotência.

Para Freud, essa experiência de frustração é essencial ao desenvolvimento do ego, nossa parte consciente que precisa aprender a lidar com os limites impostos pelo mundo externo. Esse "rasgar-se" inicial simboliza o momento em que o indivíduo percebe a realidade e precisa desconstruir a ilusão de um "eu" que tudo pode. Desse modo, o processo de "rasgar-se" é uma forma de amadurecer, de aceitar que o mundo não gira em torno dos nossos desejos imediatos, mas que precisamos encontrar um caminho que respeite tanto nossos impulsos quanto as limitações externas.

Winnicott e o Self Verdadeiro: Rasgar a Máscara e Encarar a Autenticidade

Donald Winnicott, importante psicanalista britânico, contribuiu para essa reflexão com o conceito de self verdadeiro e falso. Desde os primeiros momentos de vida, interagimos com o ambiente — inicialmente representado pela figura materna — que molda como percebemos o mundo e a nós mesmos. Winnicott propôs que, quando o ambiente é "suficientemente bom", permite que o bebê se desenvolva com um senso de autenticidade, revelando seu "self verdadeiro".

Contudo, quando o ambiente não oferece esse espaço para expressão genuína, surge o que Winnicott chamou de "self falso". O "rasgar-se", nesse sentido, representa o momento em que começamos a perceber que a máscara social que usamos — ou seja, esse self falso — pode não refletir quem realmente somos. Quando nos rasgamos, desconstruímos essa máscara para, então, reconstruirmos algo mais próximo do nosso self verdadeiro. Encarar essa desconstrução é doloroso, mas essencial para encontrar autenticidade e um sentido de vitalidade real na vida.

Melanie Klein e a Integração das Partes do Eu: Frustração e Reparo

A psicanalista Melanie Klein trouxe uma perspectiva profunda sobre como lidamos com as partes fragmentadas de nós mesmos. Em seus estudos, ela desenvolveu as ideias das "posições esquizo-paranoide e depressiva" como momentos de desenvolvimento psíquico. No início da vida, experimentamos uma divisão interna intensa, percebendo partes de nós e dos outros de forma fragmentada e polarizada. Porém, à medida que amadurecemos, podemos integrar essas partes, vivendo a ambivalência entre amor e ódio, desejo e frustração.

Para Klein, o "rasgar-se" é o ato de confrontar as frustrações e as partes fragmentadas que muitas vezes preferimos ignorar. Ao vivenciar essa fragmentação, podemos chegar à "posição depressiva", um estado em que integramos essas partes em uma versão mais completa de nós mesmos. Nesse ponto, o "remendar-se" ocorre ao transformar as emoções e fragmentos do passado em algo mais integrado e autêntico, que traz resiliência e nos prepara para novos desafios.

Rasgar-se e Remendar-se: Um Ciclo Necessário

Assim, na visão psicanalítica, "rasgar-se" e "remendar-se" representam um ciclo contínuo de crescimento. O "rasgar-se" nos permite desconstruir as ilusões, as expectativas e as defesas que construímos ao longo da vida, enquanto o "remendar-se" é o processo de olhar para essas experiências e reformá-las com um novo entendimento e perspectiva. Freud nos ensina sobre a importância de aceitar as frustrações como parte do crescimento; Winnicott, sobre a desconstrução de máscaras para revelar o verdadeiro self; e Klein, sobre a integração dos fragmentos do eu para alcançar um self mais completo.

Portanto, viver é mesmo um rasgar-se e remendar-se. É enfrentar, a cada dia, as inevitáveis decepções e rupturas da vida, apenas para que possamos nos reconstruir com uma força renovada, um pouco mais inteiros e autênticos. E, embora esse ciclo possa ser doloroso, é ele que nos permite avançar, ver as situações de novos ângulos e nos posicionar de maneira mais resiliente. Afinal, é essa alternância entre a desconstrução e a reconstrução que faz de nós o que realmente somos.